caiman.de 01/2009

[art_4] Brasil: O Brasil dos correspondentes (Parte III)
Lula e a reeleição em 2006

Mesmo local, mesmo pretexto. De volta à Avenida Paulista, quatro anos após a primeira vitória de Lula nas urnas. Eu estava muito atrasado, pois, antes de sair de casa, ainda tive de aguardar o discurso de Geraldo Alckmin perante os afiliados de seu partido felicitando Lula por sua reeleição. Dentro do táxi que me levava à Paulista, ouvi o discurso de Lula e, quando finalmente cheguei à Paulista por volta da meia-noite, tudo já estava sendo desmontado. Ainda consegui ver os faróis traseiros de uma fila de carros que se afastava, onde por certo se encontrava o antigo e atual presidente, supus. Pois as pessoas que afluíam na minha direção sinalizavam, a meu ver, o final da festa.



Lula

O local diante do palco improvisado estava quase vazio. Consistira de alguns trios elétricos, e um deles ostentava a palavra "demolidor" em letras luminosas berrantes. (Meses mais tarde, vi o mesmo veículo transformado em boate de strippers durante a Parada Gay na mesma Avenida Paulista.) Um grupo de percussionistas ainda tocava, enquanto algumas pessoas dançavam ao som daqueles toques. Uma faixa foi desfraldada e conduzida através da Paulista na direção Paraíso: „O povo venceu a mídia". Eu havia perdido a festa da qual no máximo umas 5.000 pessoas haviam participado, segundo informações da polícia. Era uma noite extraordinariamente fria, e as pessoas também não estavam muito animadas. 

Totalmente diferente de quatro anos antes. Naquele 27 de outubro de 2002, a aura do momento histórico pairava sobre a massa de pessoas entusiasmadas e reunidas na Avenida Paulista. Um momento de renovação. E de alegria. Na sala de imprensa em frente à Gazeta Mercantil, as equipes de TV de todos os países se acotovelavam para esperar a entrada de Lula em cena. Os fotógrafos dirigiam suas enormes teleobjetivas na direção da sacada em que o primeiro presidente "mortal" se apresentaria. (Na capa de sua edição sobre a eleição, a revista Veja falava do "primeiro presidente de origem popular". No dia 28 de outubro, a Folha de S. Paulo trazia a seguinte manchete: "Metalúrgico é o primeiro líder de esquerda a ser eleito no país".) 



Lula

Eu havia chegado em São Paulo no início de 2002 e, poucas semanas antes da eleição, aderi à ACE. Um dos primeiros eventos da ACE de que participei foi uma conferência de imprensa com o então candidato à presidência Lula, com o chefe do PT José Dirceu e o candidato a vice-presidente e "companheiro de chapa" José Alencar. Lula parecia impaciente, mas respondia ferrenhamente às perguntas que lhe colocavam. 

Essa também deveria ser a última vez em que Lula se colocaria à disposição da imprensa estrangeira de forma tão aberta. Seu voto de confiança internacional esgotou-se, o mais tardar, com os escândalos de corrupção ocorridos dois anos mais tarde. Além disso, o caso Larry Rother obviamente também não contribuiu para uma melhoria do clima entre o governo brasileiro e a imprensa estrangeira.



Avenida Paulista

Por conseguinte, não nos restava muita coisa a fazer além de observar Lula de longe. Por duas vezes, vi-o durante a campanha de 2006 em eventos realizados na periferia de São Paulo. No dia 05 de agosto, tomei um ônibus, depois o metrô e depois outro ônibus, a fim de vê-lo em São Mateus. Passei praticamente duas horas viajando e então cheguei na pequena praça, onde alguns milhares de adeptos do PT esperavam por Lula. Fiz algumas entrevistas sobre a questão se Lula por acaso sabia da corrupção dentro do PT. Na verdade, àquela época não havia nenhum outro tema mais interessante. 

Um arquiteto, militante do PT desde sua fundação, suspeitava da CIA e de Condoleezza Rice como autores de uma conspiração com o objetivo de levar Hugo Chávez e Lula a uma derrocada. E uma senhora de idade abriu espaço para ter acesso a meu microfone e fazer um juramento de fidelidade a Lula. Para sempre PT, pois, além dos grandes do PT, nenhum outro dentre os senhores políticos dignava-se a aparecer naquela cidade-satélite cinzenta.



Avenida Paulista

Alguns dias mais tarde, o entusiasmo era semelhante também no bairro das Pimentas, uma das comunidades mais pobres de Guarulhos. "Deus sabe que é por causa de vocês que cheguei na presidência!" A força de Lula sempre foi seu discurso voltado para as pessoas simples. Nas praças da periferia, sentia-se em casa. E assim as pessoas simples sempre lhe perdoavam os maus atos e as omissões ocorridas no primeiro mandato. Pois todos já sabiam mesmo que a grande política é um negócio sujo. 

Afinal de contas, mesmo os antigos simpatizantes do PT que se declararam amargamente decepcionados com os rumos do partido realmente jamais poderiam imaginar-se votando em Geraldo Alckmin apenas por causa da frustração. As trincheiras cavadas nos anos 80 e 90 ainda eram muito fundas. Por isso, foram em vão as tentativas de Alckmin em querer marcar pontos no bastião político de Lula. Em agosto de 2006, ele se dirigiu precisamente a São Bernardo do Campo, a uma distância ínfima da fábrica da VW que àquela época sofria ameaças de fechamento.

Naquele dia cinzento e sem alento, soprava um vento glacial sobre o rosto de Alckmin e Serra. Alguns milhares de adeptos do PSDB haviam se reunido diante do caminhão de onde José Serra e em seguida Geraldo Alckmin discursaram para eles. Todavia, de forma sintomática ao longo de toda a campanha, Alckmin nunca conseguiu realmente entusiasmar seu público.



Avenida Paulista

Sempre parecia crispado, e era justamente na hora do mergulho na multidão que se revelava o oposto exato do Lula profissional. Quando alguém dele se aproximava para um aperto de mãos, Alckmin em geral fechava os olhos com um leve embaraço e mordia o lábio inferior. 

No contato físico com os eleitores, Heloísa era melhor. Mas o número de adeptos reunidos no calçadão de Guarulhos para ouvir seu discurso mal beirava os 50. E mal ela pôs os pés no mini trio elétrico, desabou um violento temporal, e o céu abriu suas comportas. 



Alckmin / Serra

Alguém ainda tentou em vão segurar um guarda-chuva para proteger a candidata à presidência. Devido ao mau tempo que se abriu sobre ela, Heloísa Helena, normalmente conhecida por seus discursos redundantes, reduziu sua fala a pouco mais de dois minutos. Parecia que o tempo atmosférico havia firmado uma aliança com Lula. E a breve entrevista que ainda fiz com Heloísa sob a proteção de vários guarda-chuvas foi destruída pela água que penetrou no gravador. 

O fato de Lula não ter alcançado, por pouco, a maioria absoluta no primeiro turno decerto se deveu mais à sua própria altivez com o clima de "já ganhou" do que à força de seus adversários. Pois, por mais que se possa criticar o primeiro mandato de Lula, não havia nenhuma alternativa para suplantá-lo. Em suas próprias fileiras, nada conseguiu crescer em sua sombra prepotente. Já na oposição, faltava um candidato que tivesse uma reputação nacional semelhante à de Lula.



Heloisa

Desse modo, resta a sensação estranha de que Lula surpreendeu positivamente a muitos de seus mais ferrenhos críticos, ao mesmo tempo em que decepcionou amargamente muitos de seus mais fiéis seguidores. Naturalmente se deve levar em consideração, em favor dele, que não mais sobrara muito espaço para as grandes idéias e ideologias dos anos 80. Elas parecem uma reminiscência melancólica do período anterior a um mundo que se globaliza de maneira cada vez mais forte e que vai se tornando mais e mais complexo. Resta apenas fazer boa cara diante de uma apresentação ruim.



Uma menina com uma foto de Lula

Talvez esse também tenha sido o espírito predominante entre as pessoas reunidas na Paulista naquela noite de pleito estranhamente enturvada. Ainda tirei algumas fotos da multidão no momento em que se dispersava. Somente semanas mais tarde, descobri em uma dessas fotos algumas pessoas acenando no palco dos comícios que normalmente estava vazio. Quando ampliei a foto no máximo, vislumbraram-se nela, de modo fantasmagórico, os contornos de Lula acenando para as poucas pessoas que ainda persistiram em se postar diante do palco. Será que ele esteve o tempo todo no palco sem que eu o tivesse percebido? Será que a maioria das pessoas havia ido para casa, apesar de Lula ainda ter permanecido no palco? Em 2002, uma coisa dessas seria inimaginável. Mas os tempos mudaram.



Texto + Fotos: Thomas Milz

"Estes testemunhos compõem o capitulo mais recente, mais trepidante e mais sedutor do País-Relato, Brasil-Brasis." - Alberto Dines, jornalista, na apresentação do livro "O Brasil dos correspondentes"

Trinta anos na linha da história podem parecer um grão de areia no deserto. Mas a trajetória desde 1977, quando começa este livro, até 2007, foi talvez uma das mais ricas e vibrantes de um país, que saiu de uma ditadura e aprendeu a construir uma democracia. Em apenas 30 anos, o povo nas ruas pediu as Diretas e o Impeachment de um presidente; levou ao cargo mais importante do país, primeiro um sociólogo e professor universitário e, anos mais tarde, um operário metalúrgico, ambos, aliás, perseguidos pelo autoritarismo. Nos seus textos os correspondentes contam esta história e soltam sua veia de cronistas, mostrando os aspectos que mais impressionam jornalistas estrangeiros na cobertura de um país com a dimensão do Brasil. - Os Organizadores

O Brasil dos correspondentes
Organização:
Jan Rocha, Thomas Milz e Verónica Goyzueta
Com fotografias de:
Paulo Fridman, Roberto Cattani e Thomas Milz

Mérito Editora 2008
Preço 62 R$

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