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caiman.de abril 2001
brasil


O herói trágico – Zé-do-Burro


Duas figuras literárias, ambos de imensa ingenuidade, representam o Brasil caipira, do interior, do sertão, do homem do campo: Zé-do-Burro e Jeca Tatu. O primeiro é a figura central da peça de teatro e do filme "O Pagador de Promessas”, criada pelo escritor Afredo Dias Gomes. O segundo, personagem fruto da imaginação do escritor José Bento Monteiro Lobato, foi encarnado nos filmes cinematográficos pelo ator Amácio Mazzaropi. Amados pela audiência, ignorados pela crítica, ambos não combinam com a visão de um Brasil moderno e liberal.
Hoje vamos dar uma olhada na história de Zé-do-Burro, herói trágico, representante do Brasil arcaíco, que se perde na grande cidade, no Brasil moderno e megalopolitano com suas armadilhas e ciladas, feitos de permissividade sexual, contradições religiosas e avidez…


Zé-do-Burro, para cumprir uma promessa à Sta. Bárbara, carrega uma cruz nas costas desde sua casa até a Igreja de Sta. Bárbara em Salvador. Sua intenção é depositá-la aos pés da santa no dia 04 de dezembro, dia dedicado a ela. Rosa, sua esposa, acompanhao nesta caminhada de sete léguas. Como parte de sua promessa ele já havia dividido seu sítio no interior com os fazendeiros mais pobres de sua região. A caminhada com a cruz até Salvador seria a segunda parte da promessa. Porém, ao chegar com a cruz na porta da Igreja, ele entra em conflito com o Padre Olavo, que se horroriza ao tomar conhecimento de que tal promessa havia sido feita para que o melhor amigo de Zé, que estava doente, sarasse, sendo este amigo nada mais, nada menos que um burro.

Na falta de uma Igreja de Sta. Bárbara em sua região, a promessa foi feita no terreiro de Iansan, no candomblé, que no sincretismo religioso representa a Sta. Bárbara católica. Em sua imensa ingenuidade, Zé não vê diferença nenhuma entre Sta. Bárbara e Iansan. Mas para o Padre Olavo essa diferença é óbvia: Iansan e o candomblé são símbolos do diabo. Assim, ele manda fechar as portas da igreja para que Zé, com sua cruz, não possa entrar. Do lado de fora, nos degraus da escadaria da igreja, , sem saber como argumentar e sequer entender os motivos de Padre Olavo, fica com sua cruz e com a determinação de pagar sua promessa a qualquer preço.

Enquanto isso, Rosa deixase conquistar pelo galante Bonitão, um gigolô da vida noturna de Salvador, que lhe dá oportunidade de sonhar com a vida na cidade e todo a luxúria que ela poderia oferecer. Dividida entre Zé e Bonitão, entre aspirações e condescendências, ela se encontra numa situação cada vez mais confusa. Zé, que espera diante da igreja, provoca reações e atenções da população de Salvador. Enquanto Padre Olavo procura achar uma saída para uma situação politicamente tão desfavorável para a Igreja Católica, Zé-do-Burro vai progressivamente se tornando um herói involuntário. Os comerciantes da praça começam a usar a pessoa de Zé para fazer negócios às suas custas. A imprensa, farejando uma boa história, transforma o ingênuo Zé em uma figura revolucionária, que reparte suas terras com os "sem-terras” a favor da reforma agrária. A caminhada de 42km de distância carregando a cruz nos ombros é interpretada como: "Uma prova de resistência física... [ ] e de dedicação..." O jornal se declara disposto a apoiar a futura carreira política de Zé em troca da exclusividade de sua história. Até o poeta de rua, Dedé, sonha com um bom lucro com a publicação do sofrimento de Zé em versos. E para o candomblé de Minha-Tia seria um sucesso, conseguir fazer com que Zé pague sua promessa diretamente à Iansan, levando para lá sua cruz.

Para agrado da população negra e dos insatisfeitos com Padre Olavo e com a Igreja Católica, Zé, em sua obstinação doentia, enfrenta a autoridade católica. A população negra de Salvador se coloca então ao lado dele. Contudo ninguém escuta ou quer escutar sua palavra simples. Ele só quer pagar sua promessa. Sua intolerante teimosia representa na verdade a luta pela própria dignidade. Quando a polícia chega para prendêlo, produz-se uma desordem tumultuada, na qual ele vem a morrer. E assim Zé é transformado de herói involuntário em herói trágico: sua morte é a consequência forçada do dilema causado por sua teimosia em contraponto à intransigência da Igreja Católica.

A figura de Zé-do-Burro oferece, apesar de sua aparente superficialidade e sua limitada intelectualidade, e talvez exatamente por isso, uma abrangente interpretação. Certamente muitos observadores ou espectadores de "O Pagador de Promessas” questionam a razão de uma pessoa tomar a seu cargo tal sofrimento por causa de um burro. E mais admirável ainda é a maneira como ele, até o final, se mantém inflexível em sua decisão – mesmo diante do provável fracasso de seus propósitos e da perda ameaçadora, primeiramente de sua esposa e logo depois inclusive de sua vida.

Alfredo Dias Gomes na sua Nota do Autor: "O Pagador de Promessas é a estória de um homem que não quis conceder – e foi destruído. Seu tema central é, assim, o mito da liberdade capitalista. Baseada no princípio da liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios necessários ao exercício dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória." Na realidade é a intolerância que impede a liberdade do homem. Ela não deixa que cada indivíduo siga seu próprio caminho.

Zé luta para pagar a promessa que ele fez, seja ela feita à Iansan ou à Sta. Bárbara. Com ela foi feito o pacto, e o cumprimento deste interessa somente à Zé e à Santa, e por isso ele não pode "faltar” com ela. Inconsciente sobre a diferença entre as santas, Zé segue em sua teimosia sem perceber as consequências que suas atitudes provocam em Salvador. Mas para Zé, assim como para Padre Olavo, este conflito trata-se de uma luta pelos seus valores mais dignos, pela sua mais profunda convicção e fé. Ambos estão dispostos a lutar até o fim. "A religiosidade arcaica e o sincretismo ingênuo de Zé, para quem Iansan e Santa Bárbara, o terreiro e a Igreja, tendem a confundir-se, se chocam inevitavelmente com o formalismo dogmático do padre...À sua maneira, ambos têm razão; mas ambos pecam pelo excesso."

Para Anatol Rosenfeld, escritor e crítico de teatro, Zé é um "verdadeiro "herói trágico” de certo cunho mítico”. Ele não tem consciência de seu papel, mas aos olhos do povo seus atos tomam uma outra dimensão, transfigurando-os em atos místicos de um novo Salvador. Esta não é porém a intenção de Zé. Ele só repete, desesperadamente: "Ninguém ainda me entendeu..." Como representante do sertão, Zé transporta sua noção de valores e suas idéias para a cidade grande – e fracassa com elas e com sua incapacidade de se fazer entender: "Entretanto, na ação da peça Zé do Burro se revela, [...], como incapaz de enfrentar a cidade, ou seja a civilização contemporânea. Apesar da exaltação do herói – que se transmite plenamente ao público – a peça de certo modo mostra o naufrágio inevitável do herói mítico no mundo extremamente mediado da metrópole e da realidade brasileira atual...." Há uma ausência de comunicação entre estes dois mundos. E assim, Zé não consegue se fazer ouvir: "...naufrágio que não só decorre do seu objetivo pessoal,. [...], mas da incapacidade do herói de se comunicar com a cidade, por viver num tempo diverso do tempo citadino." Enfim encontramos na tradição da tragédia grega o final trágico de Zé. Sua própria cegueira diante da realidade é a causa de seu fim.

Para a maioria dos espectadores da peça ou do filme, a figura de Zé e seu comportamento, um "novo Cristo”, que com sua clara determinação e suas convicções arcáicas chega ao fundo do poço diante do mundo moderno, é quase impossível de ser entendido. Para Alfredo Dias Gomes, porém, Zé representa qualquer um de nós. E cada um de nós tem que enfrentar a batalha de Zé: "Como Zé-do-Burro, cada um de nós tem suas promessas a pagar. A Deus ou ao Demônio, a uma Idéia. Em uma palavra, à nossa própria necessidade de entrega, de afirmação. E cada um de nós tem pela frente o seu "Padre Olavo"."

Texto: Tom Milz

Na próxima edição, a partir do 1° de maio, vamos dar uma olhadinha na figura do Jeca Tatu, personagem que imortalizou e que foi imortalizado pelo ator Amácio Mazzaropi.

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