caiman.de 12/2005


[art_1] Brasil: Tiradas do caminho
Crianças de rua em São Paulo: entre neo-liberalismo e sem-futuro

Logo que o sinal feche, Mateus corre de carro para carro. Numa mão, a garrafa com uma mixtura de água e detergente. Na outra, o limpador de pára-brisas. Por um Real, ele limpa rápidamente todos os vidros. Por dia, dá para tirar uns vinte Reais. Faz um ano e meio que o menino de desesete anos vive em baixo das árvores na faixa verde de uma avenida movimentada de Pinheiros, bairro paulistano de classe média.

Ele fugiu de casa, e não quer mais voltar. "Confusão demais, e nada de perspectiva" o espera lá. Também já passou por um lar da prefeitura. "Foi a mesma coisa como em casa." Mateus é um de 3,000 menores, segundo a prefeitura, que trabalham nos cruzamentos do centro da cidade, lavando vidro, fazendo malabarismo ou vendendo bala e chiclete.

Com a campanha "Dê mais que esmola, dê futuro" a nova e conservadora prefeitura tenta acabar com esse negócio e levar as crianças das ruas de volta para suas famílias.

Para críticos dessa política, como o Padre Júlio Lancelotti, ativista radical do movimento dos sem-tetos de São Paulo, tudo isso não passa de ser apenas "uma tentativa de livrar o centro de sujeitos não-desejados, uma mera ação política do que um programa social".

E para Márcio Pochmann, ex-secretário municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da prefeitura de São Paulo, o programa faz parte de uma "política neo-liberal na velha tradição brasileira de esconder os problemas ao invés de resolvé-los". "A prefeitura acha," segundo Pochmann, "que sem cidadão que dá esmola, o problema nem existisse. Pareçe que o rabo balança o cachorro!"

"Pela lei somos obrigados a combater trabalho infatil", explica uma funcionária da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da prefeitura. "O lugar das crianças é a escola e a família, e não a rua." A prefeitura promete ajudar aquelas famílias que conseguem reintegrar essas crianças e as colocam na escola. Ou, pelo menos, "essas famílias vão ter preferência na inclusão no programa Renda Mínima".

A renda mínima vale entre trinta e oitenta Reais por mês, dependendo da renda familiar. Mas, "a última vez que fiquei sabendo que alguém conseguiu dinheiro do programa Renda Mínima foi no ano passado", conta Fernanda Bortalini, diretora da Casa de Acolhida Padre Batista, no bairro de Cambuci. "Não os motoristas nos cruzamentos deveriam parar de dar esmola, mas a prefeitura", critica Padre Lancelotti. "Quando há criança que vive de esmola, é um sinal que falta política social. Precisamos de programas que capacitem os adolescentes para o mercado de trabalho, ao invés de fazer deles mendigos perpétuos, vivendo do estado."

Pochmann concorda. "Faltam ações para ofereçer a essas famílias uma perspectiva de futuro. No último censo, de 2000, foram identificadas 350,000 famílias sem nenhuma fonte de renda registrada apenas na cidade de São Paulo. Essas famílias passam vinte e quatro horas por dia tentando sobreviver aquele dia. Por isso, eles não têm tempo para planejar suas carreiras profissionais do jeito que a prefeitura queria."

"A maioria das crianças e adolescentes que trabalham aqui no cruzamento vão para escola durante o dia. À noite, eles trabalham aqui para ganhar a sobrevivência para si e suas famílias," conta Mateus. "Eles estão aqui, por que precisam da grana para sobreviver. Mas ninguém os força a trabalhar, a não ser a própria miséria."

Neste ponto, a prefeitura discorda. "Existem muitos casos aqui em Pinheiros e outros bairros, em que crianças são forçadas a trabalhar nos cruzamentos. São os pais ou parentes que as trazem da periferia ou até de outros municípios para trabalharem no centro. E isso é um caso de polícia", diz uma funcionária da tutelar da criança de Pinheiros.

José Pereira Lopes Neto, delegado titular do 14º Distrito Policial em Pinheiros, concorda. "Se uma criança realmente é forçada a trabalhar na rua, com certeza é uma caso de polícia." Mas, "não me lembro de um caso nos últimos meses. A última vez que a gente tinha que interferir foi muito tempo atrás", ele conta. "A prefeitura tenta empurrar sujeitos não-desejados para a periferia. Mas foi exatamente na periferia que eles cortaram muitas verbas nos últimos meses. Por isso, mais pessoas saem da periferia e vão para o centro, para lutar pela sobrevivência", diz Pochmann.

Miguel é um destes casos. O menino de dez anos deixou a família desfeita na periferia – um irmão na prisão, o pai fugiu para a casa de um parente – e tentou a sorte no centro da cidade. "Foi muito chato em casa. Nem tinha brinquedo." Vendia bala na Avenida Paulista. Dormia numa favela, "na casa dos meninos da boca de fumo." Miguel também robou, conta Fernanda Bortalini, que agora cuida dele na Casa Padre Batista.

"Para crianças como Miguel, a rua significa liberdade. E o centro ofereçe a eles as melhores chances de sobrevivência. Ou pelos menos é isso que eles acham nas suas fantasias infantis", diz Fernanda. Por isso geralmente são os adolescentes mais velhos que procuram uma vaga numa casa de acolhida. Aqueles sem ilusões e frustrados, cansados da luta perpétua pela sobrevivência.

A Casa de Acolhida Padre Batista ofereçe vinte e cinco vagas para crianças e adolescentes. Durante o inverno, de junho a setembro, a prefeitura paga por mais cinco vagas extras. Programa Frente Fria é o nome oficial. Abrigo para os meses de muito frio, quando as temperaturas noturnas podem baixar para perto de zero graus. As crianças podem ficar por no máximo seis meses. Depois eles devem voltar para as famílias. Mas normalmente eles vão para a próxima casa de acolhida. Ou voltam para a rua. "Muitas vezes, a família não os quer de volta. Ou não têm nenhuma perspectiva para ofereçer a eles", diz Fernanda.

Miguel não quer voltar para sua família na periferia. "Quero ir para a escola dos grandes, depois estudar e ser dentista", ele descreve seus planos de longo prazo. No curto prazo, ele quer jogar videogame e comer bala. Mas Fernanda nega, e Miguel corre pelo portão, para a rua. "Então vou embora!", ele grita sorrindo. Fernanda cruza os braços e respira fundo. "Não podemos segurá-lo aqui contra a vontade dele. Ele está aqui por livre e própria vontade."

"Sei que é apenas chantagem, e ele volta daqui a uns minutos", diz ela com um esforço otimista. Mas seu olhar cansado diz outra coisa.

Texto + Fotos: Thomas Milz