[art_3] Brasil: Hitler e o boi elétrico

"Por que vocês alemães sempre bebem cerveja quente?" Há pedaços de gelo boiando no meu copo. Depois de horas no freezer, parece milagre que a garrafa não tenha simplesmente explodido. Por outro lado, a cerveja congelou diretamente no copo. Pacientemente espero para que a cerveja descongelasse e atingisse uma temperatura bebível. Isso demora.



Enquanto isso, imensos pedaços de carne estão sendo grelhados na churrasqueira. Quando a gordura pinga no fogo, há chamas subindo para o céu. "Você tá sem fome, hein? Tem que se alimentar, cara!" E já há mais um pedaço enorme no meu prato. "E vê que você bebe sua cerveja, antes que fique quente!" o mestre da carne me avisa. "E você Hitler, some daqui!" ele grita para o cachorrinho, que me olha com olhos tristes, olhos que pedem uma única coisa: um pedaçinho de carne.

Aqui é terra da carne! Isso já ficou claro quando atravessamos essa região de carro. Fazendas de gado por todos os lados. Onde antigamente se extenderam selvas, hoje em dia reina o gado. A região de Araçatuba tem a maior densidade de aviões por habitante. Neles, os fazendeiros sobrevoam suas terras. Ou vão fazer shopping em São Paulo. É tão normal andar de avião como andar de carro. Isso pelo menos é o que a mulher ao meu lado me diz, e ela deve saber, pois nasceu aqui no interior de São Paulo.

Até parece necessário ter um avião. Há um buraco enorme na nossa frente, onde, até uns dias atrás, tinha uma ponte. Mas a chuva dos últimos dias deixou a ponte cair. Os troços enormes de cimento apontam para o céu.
 
Foi essa região que, 130 anos atrás, gerou a riqueza de São Paulo. Na época, tinha infinitas plantações de café, produzindo 90% do consumo global. Ainda se acha pequenas plantações escondidas, mas a produção em massa migrou para Minas Gerais e Paraná há muito tempo.

O negócio da hora é a carne, e quando se fala em rebanhos, se fala em centenas, milhares de  cabeças de gado. Um quilo de filé custa 8,50 reais, direto das grandes fábricas de matança. Em São Paulo custa 28,50 reais.
 
"Somos convidados para três churascos amanhã. Esteja preparado!" Ao lado da estrada aparecem pequenas casas de madeira. "Os bois mais caros têm suas próprias casas para dormir. Bom, vale a pena construir uma casinha para um boi que custa um milhão de reais, não é?"
 
"Uns meses atrás tinha o churrasco mais caro da história: 1,6 milhões de reais! Um cabo de energia elétrica caiu em cima de um boi de 1,3 milhão de reais. O coitado morreu eletrocutado. E um outro boi se encostou nele e morreu junto. Graças a Deus que o segundo só valia 300,000 reais. Mesmo assim virou o churrasco mais caro da história."

Cheguei a primeira noite na cidade. "Quero beijar a princesa da cidade!" Foi dito descuidadosamente e sem pensar melhor! Na pequena cidade perto de Araçatuba teve neste final de semana a festa do peão. No meio da bagunça o tradicional rodeio.

De chapéu tipo cowboy e calças bem apertadas os peões tentam se manter nos bois furiosos. Em frente da arena vende-se churros e caipirinhas em copos de meio litro. Sem gelo. "Assim cabe mais cachaça no copo!"
 
Música sertaneja soa dos alto-falantes, falando de mulheres "com corpo de violão". "Quero ouvir todos os homens!" pede o cowboy com o microfone no meio da arena. "E agora todas as bichas!" A platéia gosta dessas "brincadeiras" e se curva de rir. Esses copos de meio litro são perigosos demais, penso enquanto os sons do espetáculo ressoam nos meus ouvidos.
 
Uma gordinha loira falsa, vestida de chapéu de pérolas falsas e mini saia cafona aparece na minha frente. "Olha, a princesa da cidade. Tem que beija-la ou pagar cerveja para todo mundo. Pode escolher!" A escolha é fácil. Há cerveja de rodeio, com um cowboy desenhado na latinha. Mas o sabor é como sempre, nada especial.
 
"Você já ouviu falar do churrasco mais caro da história? Um boi foi morto por um cabo elétrico que caiu em cima dele. Eletrocutado na hora. 3 milhões de reais de prejuízo!" A mulher de aproximadamente 45 anos fuma sem parar. "Ela gosta de você!" sussura minha amiga no meu ouvido. O mundo realmente está cheio de surpresas bem esquisitas e sem graça.

Não me lembro mais de muita coisa que aconteceu naquela noite. Já na madrugada do dia seguinte fui recolhido perto da rodoviária pelas primas da minha amiga. Não posso dizer para onde eu estava indo naquele momento. Mas à tarde tive que me defender das acusações falsas e até absurdas de ter mijado em cima dos chinelos do meu anfitrião. Tenho certeza que foi o Monet, o cão castrado dele, e não o alemão viciado em caipirinhas sem gelo.

"Nada de caipirinhas hoje" jurei para a noite seguinte. E assim a recuperação é feita de carne e cerveja. Falando em cerveja, aquele copo descongelou tanto que agora dá para beber. O dono da casa tira meu prato das minhas mãos e joga o conteúdo (cerca de 300 gramas de carne deliciocíssima) sobre o muro para o jardim do vizinho. "Não é bom e aconselhável comer carne fria. Especialmente quando há ainda mais uns quilos prontinhos na churrasqueira." Com um facão ele divide os pedações de carne. "Por que não deu pelo menos para o coitado do cachorro?" Olho para a criatura de olhos grandes deitada nos meus pés.

"Hitler tem que aprender que cachoro não pode ficar pedindo comida da gente." E com a mão direita levantada ele grita para o cachorro. "Vá no seu cantinho, Hitler. Rápido!"

Com a outra mão segura mais uma dessas garrafas congeladas de cerveja. De repente, pega meu copo e joga a cerveja no chão. "Mais uma vez, você deixou esquentar sua cerveja! Mas não te preocupe, tem mais no freezer."

Enquanto olho para os blocos de gelo que boiam no meu copo, o dono da gandaia vira as montanhas de carne na churrasqueira. "Uns meses atrás, aconteceu o churrasco mais caro da história, perto daqui. 60 milhões de reais jogados pela janela! Virou manchete no país inteiro."

Me pergunto por que o povo daqui gosta tanto de cerveja gelada mas toma caipirinha sem gelo. Hitler está deitado no cantinho dele e tira uma soneca.

Quem sabe o que ele está pensando?



Texto + Fotos: Thomas Milz