ed 06/2009 : caiman.de

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[art_4] Brasil: A humanidade e a cerveja
 
A humanidade deixou de ser nômade e se assentou para poder produzir cerveja? Josef H. Reichholf, escritor científico alemão, defende essa tese no seu mais recente livro "Warum die Menschen sesshaft wurden" (Por que os homens se tornaram sedentários?), lançado há alguns meses na Alemanha. Encontramos o autor, ex-professor da Universidade Técnica de Munique, para esclarecer essa relação surpreendente entre a cerveja e um dos momentos mais importantes da história da humanidade.



Caiman: O ser humano e o álcool. Quando começou essa relação?

Josef H. Reichholf: Provavelmente, bem antes do que imaginamos. Há animais que comem grãos fermentados e o homem começou, já na idade da pedra, a usar a fermentação alcoólica de uma forma sistemática. Temos indícios do uso de álcool pelo homem há pelo menos dez mil anos atrás, talvez até mais cedo, há quinze ou vinte mil anos.

Caiman: Para que os homens usavam o álcool?

Josef H. Reichholf: Para festas religiosas e tribais, da mesma forma que se faz hoje em dia. O amido é usado para a fermentação alcoólica, e a bebida é tomada para atingir um estado eufórico que fortalece a união do grupo.

Caiman: Também foi usado para fins medicinais?

Josef H. Reichholf: Não naquela época, pois o teor alcoólico era baixo. Na idade da pedra, já havia o conhecimento de plantas medicinais mais adequadas para isso, com melhores efeitos.

Caiman: Os nômades já usavam o álcool?

Josef H. Reichholf: Não, pois para produzir álcool são necessárias plantas que contêm amido, ou seja, grãos ou tubérculos, como a mandioca ou a batata. Mas o segundo grupo não serve tão bem para a produção de álcool como os grãos.

Para obter estes grãos e produzir cerveja, era preciso permanecer em uma região por pelo menos seis meses. Era preciso vigiar as plantações, para defendê-las tanto de outros grupos de humanos quanto de animais.

Sabemos que apenas uma parte da tribo se tornou sedentária, os servos ou, em geral, as pessoas de nível hierárquico mais baixo. Os nobres continuavam vagueando. Eram os únicos a ter o direito de caçar, como era comum na Europa até na Idade Média e no começo da Idade Moderna.

Caiman: Quer dizer que a cerveja era, no começo, uma bebida nobre?

Josef H. Reichholf: Quem tomava cerveja antigamente eram os nobres. Só eles tinham o poder de deixar outras pessoas trabalharem na produção e só eles tinham poder aquisitivo para desviar o sobressalente da safra de grãos para a produção de cerveja. As imagens mais antigas de consumo de cerveja são dos sumérios, cerca de 4.500 anos antes de Cristo. Mostram pessoas bebendo cerveja usando canudos. Não o povo, mas nobres e líderes religiosos.

Aliás, foi nessa mesma época que também surgiu o pão como fonte de alimentação. Os documentos mais antigos a respeito do pão e da cerveja são dos sumérios. Mas existem indícios indiretos de épocas ainda mais remotas, de oito mil anos antes de Cristo ou até mais antigos: jarros de 20 ou 30 litros. Não temos nenhuma explicação convincente para o uso de jarros desse tamanho - a não ser para a produção de cerveja. Podemos observar o uso desse tipo de recipientes até na Amazônia e nos Andes, nas tribos que tomam Chicha.

Também foram achados almofarizes que serviam para esmagar cereais. No caso do uso de grãos para a alimentação, eles eram utilizados frescos e ainda moles. Para que você deixaria os grãos ficarem duros? Uma das explicações seria para usá-los na produção de cerveja.

Caiman: As culturas que conheciam o pão também conheciam a cerveja?

Josef H. Reichholf: Sim. O mais antigo processo de produção de cerveja é quase idêntico ao da fabricação do pão. Preparava-se uma massa que servia tanto para o pão como para a cerveja.

Interessante lembrar que podemos dividir a humanidade em dois grupos biológicos, com reação oposta em relação ao álcool: aqueles que têm a desidrogenase e o grupo com uma quantidade menor de desidrogenase e que não suporta consumir grandes quantidades de álcool. Esses povos usavam tradicionalmente outras drogas diferentes do álcool, como a coca na América do Sul.

As zonas climáticas também têm uma influência importante sobre os povos que tomavam cerveja ou não, pois a durabilidade da bebida depende muito da temperatura ambiente. Em um ambiente quente, os processos de decomposição da cerveja começam logo. Por outro lado, a cerveja mantém-se conservada por semanas ou até meses em um ambiente frio.

 
Nas regiões cervejeiras tradicionais, como a Alemanha ou a República Tcheca, essas condições ambientais só se formaram na chamada "Pequena Idade do Gelo", entre os anos 1500 e 1850, com invernos mais rigorosos. Foi possível cortar o gelo dos lagos congelados e estocá-lo em cavernas, minas ou porões, junto com os barris de cerveja, garantindo uma durabilidade maior da bebida e, consequentemente, o abastecimento durante todo o inverno e parte da primavera.

Daí vem o nome Lager para um determinado tipo de cerveja - lager significa armazém, em alemão. A possibilidade de tomar cerveja no verão é consequência da existência dos frigoríficos modernos.

Caiman: Isso também se reflete na divisão entre os países de tradição cervejeira ou da vinicultura?

Josef H. Reichholf: Sim, até hoje percebe-se esta divisão na Europa. Nos países do Mar Mediterrâneo e da costa atlântica prevalece o consumo de vinho, pois as temperaturas elevadas criam um ambiente difícil para a cerveja e, ao mesmo tempo, facilitam a vinicultura. Por outro lado, nas regiões centrais e do leste da Europa, onde as temperaturas são mais baixas, há uma forte cultura cervejeira.

Caiman: Pode-se dizer que o homem se assentou para produzir cerveja?

Josef H. Reichholf: Eu diria que é uma interconexão de componentes. Para poder produzir cerveja, era necessário encontrar uma região com alta densidade de gramíneas, ocupar esta região e estabelecer estruturas para a coleta dos grãos e também para sua defesa. Era preciso que uma parte significativa da tribo se dedicasse ao processo e também era necessária uma divisão de trabalhos e tarefas, coisa que não existia entre os nômades.

Texto, entrevista e fotos: Thomas Milz

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