caiman.de 03/2006

[art_1] Brasil: Duas vezes Guarujá e de volta
Caos teuto-argentino no Brasil

F. adora o mar de Guarujá. Algo assim não se encontra em Buenos Aires, ele suspira. Tão verde-azul, limpo, com ondas maravilhosas. A cadeira de praia colocada na beira da água, concentrado na literatura ultra-intelectual. Um livro por dia, na média. Digestão intelectual de alta velocidade. Tanta faz se for em espanhol, português, italiano, francês ou inglês. F. supera todas as barreiras idiomáticas com facilidade. Argentinos são os pensadores da América do Sul.

De vez em quando, seu foco se desvia e seu silêncio pensativo é interompido por um suspiro. Ele solta um "Oh my God" e seu olhar segue as beldades brasileiras quase nuas. Algo assim não se encontra em Buenos Aires, ele suspira. Tão sinuosas, de balanço leve, e tão pouca roupa na pele.


Algumas vezes por ano ele vem para São Paulo, para entrevistar personalidades do mundo futebolista brasileiro. Para driblar, em tais ocasiões, o cotidiano brasileiro tão complicado e cheio de ciladas, conta com a ajuda do alemão T.. Famosos por seus talentos de organização, por serem rochas firmes na maré alta do caos latino-americano, quem, se não os alemães, conseguirá superar as loucuras do dia-dia brasileiro?

Como aconteceu no ano passado. Logo quase tudo resolvido para as atividades da semana que vem - assim pôde-se curtir um pouco e partir para as praias de Guarujá, a duas horas de São Paulo. Com o recém-comprado celular na mochila, "para fazer a última ligação, necessária para arranjar tudo, da praia". Otimismo argentino, o sol brilhante, um alemão com toda a organização na mão - o que poderia dar errado?

Tão logo que deixaram as últimas casas de São Paulo para trás, o céu, de repente, escureceu. Raios partiram as nuvens, das quais a forte chuva começou a cair. "Bom, até chegar em Guarujá, o tempo pode ainda melhorar", um tranquilizou o outro. Chegou a hora de fazer a última chamada, decisiva aliás. Mas no meio das montanhas da Serra do Mar não houve sinal.



Tal situação não mudou durante as próximas duas horas, já que o ônibus esteve preso no engarrafamento. E quando, finalmente, o celular pegou sinal, percebeu-se que tinham esquecido em casa o papel com tal número tão decisivo. Pura sorte que alguém ainda estivesse em casa, achou tal papel e deu o número para eles. Puro azar que justamente agora o crédito do celular acabou. "O que aconteceu com tal talento de organização dos alemães, hein?", reclama F. do destino ingrato.

Chegaram em Guarujá, e nada mais fácil do que comprar um cartão telefônico para inserir o novo crédito. Só que agora a bateria do celular já não aguentou mais. Mas para que servem, afinal de contas, os orelhões onipresentes? Assim, tudo estava em panos quentes. Finalmente. Hora de ir para a praia. Praia deserta, aliás. Mas dá para entender que a maioria das pessoas não curte muito praia com chuva forte. E com a temperatura caindo tanto, até esteve um pouco frio para tomar banho. Mas, tanto faz, já que eles estavam aqui. "Para falar verdade, eu gosto muito de tempo chuvoso", F. espalhou seu otimismo argentino.

Junto veio uma porção de camarão supostamente fresco, com maionese. Algo assim não se encontra em Buenos Aires, ele suspirou. Durante os três dias que seguiram tal comida, T. quase não saiu do banheiro, enquanto F. preferiu consultar o hospital mais próximo.

Mas este ano tudo dá sinal de ser menos estressante. Não há telefonema importante para fazer, o tempo muito bom, e o camarão com maionese é deixado de lado. Para driblar o movimento forte de fim de semana, eles viajam durante a semana. Assim, F. coloca a cadeira de praia na beira da água, concentrado na literatura ultra-intelectual. Um livro por dia, na média, como já disse. Mas a praia está lotadíssima. "Como amanhã é feriado, todo mundo está na praia", explica o ambulante de sorvete.

Isso explica porque os dois passam o período entre sete e meia-noite andando pela cidade, procurando, desesperadamente, por um lugar para dormir. Tudo lotado. Algo assim não se encontra em Buenos Aires, ele suspira. Lá, sempre se acha um quarto num hotel, sem problemas.



E quando eles desistem e concluem que seria melhor voltar para São Paulo, já não há mais ônibus que suba a serra. "Vamos pegar a balsa para Santos. Lá há hoteis em abundância", T. assume a ponta da organização.

Mas até Santos é tomada pelos turistas farofeiros paulistanos. "Para falar verdade, eu gosto muito decaminhar", T. espalha seu otimismo alemão. Depois de sete horas de caminhada de um hotel lotado para outro, o olhar argentino sinaliza matança. E até a idéia de dormir juntos num quarto de um motel, sob a luz vermelha que ilumina a cama casal redonda, não recebe suas boas-vindas pelo ego macho do argentino. "Prefiro dormir na praia do que junto com alemão numa cama redonda de um motel!"

Mas, finalmente, a sorte acena para os dois. Encontram um hotel com vaga. "Têm tantos alemães organizados no mundo, por que é que justamente eu encontrei um mais caótico, mais até que todos os latino-americanos?", suspira F. profundamente. Nenhum porteño merece isso, pois pertencem à aristocraçia sul-americana.

"Buenos Aires é", nas palavras de um poeta muito sábio, "a capital de um império que nunca existiu."

Enquanto você lê essa matéria, os dois estão, mais uma vez, viajando juntos por algum canto do Brasil, no meio de uma luta duríssima contra as ciladas do cotidiano brasileiro.

Se tudo der certo, terão mais dois dias sobrando, para relaxar um pouquinho. "Podemos ir para a praia de Guarujá", F. já logo tinha pedido. "Tão bonito aquele mar!"

Algo assim não se encontra em Buenos Aires, ele suspirou.

Texto: Thomas Milz
Fotos: F.