caiman.de 02/2007

[art_1] Brasil: Quem tem fé vai a pé...

Caminhar os quilômetros que conduzem os baianos até a Colina Sagrada, definitivamente, não é uma coisa fácil, mas o esforço é válido e compensador.

Tinha na memória a missa rezada um ano anterior por Monsenhor Sadoc, na igreja do Instituto Feminino da Bahia, e a recordação do meu primeiro Bonfim aos 17 anos. Muitas informações! Cresci ouvindo minha tia Alice falar das missas que ele celebrava na matriz da Purificação e senti muito orgulho da capacidade que aquele senhor tem de investir onde ninguém ousaria tanto.


Recordo-me com muita clareza as suas palavras logo no início da missa: ‘Hoje, estamos aqui reunidos, para rezar por todos aqueles que estão indo ao Bonfim. Sim, vamos rezar, pois se vocês perguntarem a qualquer um deles onde estão indo, certamente ouvirá que ao Bonfim.’ Rezemos. Um padre católico celebrando uma missa para pedir a Deus por toda aquela multidão que vai, todos os anos, ao Bonfim. Incrível!


Da adolescência, recordei as paqueras, o trio, a companhia das primas que, mais do que parentes, eram, e ainda são, amigas, grandes amigas. Lembrei das muitas brigas que presenciamos, dos tiros no final do percurso e refleti a transformação da festa. Naquele tempo havia trio elétrico, bloco, e o circuito estava restrito ao comércio de Salvador.

Hoje, sem blocos, aqueles que querem apenas curtir a festa profana, sem nunca deixar de ser também ‘sagrada’, ficam na Marina e vivem o Bonfim Light. Ainda não sei por que light afinal, não perdem calorias e ganham muitas nas cervejas, batidas, ligantes e aperitivos da festa. Tudo bem! Rezemos por eles também.


Ainda como antes, há os bêbados, os camelôs, os protestos públicos, as comitivas dos políticos e a sensação de farra que o baiano sabe criar como ninguém. De novidade, há muita tranqüilidade nas pessoas. Entendi, enfim, o que Monsenhor Sadoc sabiamente dizia. Todos aqueles que estavam ali, de maneira direta ou indireta, vendendo ou comprando, protestando ou rezando, estavam no caminho da Colina Sagrada para agradecer ao Senhor do Bonfim as conquistas e renovar pedidos. E todos os caminhos conduziam para um único ponto... fé.

Fé, elemento aglutinador. Força estranha que vem não se sabe ao certo de onde mas que simplesmente nos guia na mais profunda escuridão. Apesar do sol do meio-dia, da luz da cidade e da energia doida que circulava nas ruas, havia escuridão. Caminhei muitos metros completamente cega.


Lá fui eu. Enquanto guiava um alemão muito querido e explica a importância da festa, eu fazia, silenciosamente, minha reflexão. Vi muitas coisas, também tive que explicar outras tantas, fazia parte. Havias baianas por todo o caminho, meninas iniciadas ainda muito jovens no seu primeiro percurso como baiana, senhoras feitas há mais de 25 anos, richelieu... Quantas histórias podem caber em cada abertura daquele bordado que elas exibem com tamanha beleza? Quanta informação há no simples amarrar de um torço? Quantos desconhecem essa história? Quantas vezes suas ancestrais fizeram a purificação das igrejas de Salvador com apenas água e sabão? Quanto há de orgulho no simples ato de caminhar até o Bonfim para hoje perfumar as escadarias da igreja com água de cheiro, alfazema e folhas? Quantos dias são necessários para preparar a infusão carregada nos potes que todos aguardam para receber como bênção? Sapiência.


Bênção. A bênção. Uma bênção que nem de longe está ligada ao patriarcado católico. Mãe, mães de santo. Mães de homens santos. A bênção minha mãe! A bênção meu pai Oxalá. Que todos os santos me protejam.

Quando se inicia o caminho na matriz da Conceição da Praia não é possível imaginar o que nos espera. Caminhos de luz e de sol. Pegamos a saída dos Filhos de Gandhy. Axé! Afoxé, agogô, triângulo, colares azuis e brancos que hoje, infelizmente, não podem ser trocados por beijos. O carnaval vai chegar... e eles estarão todos lá, lindos, negros lindos, é o tapete da paz. Mas hoje não!


Percepção de uma cega: cores, luz e sons.

Ainda com o cheiro de alfazema no ar adiantamos o passo e a cada momento uma explosão de cor. Os vendedores sabem fazer a sua festa! Fitas do Senhor do Bonfim carregadas em armações de madeira, colares de Gandhi, de sementes de Pau Brasil, e de búzios, pendurados no pescoço, ombros e braços compondo uma vitrine humana. Ah! Bahia... ainda tem aquele que grita por uma foto do gringo, uma foto que segundo ele é internacional e que portanto o fará ídolo, mas tem que comprar sua cerveja... esse certamente tem estilo.


Passando pelo comércio presenciamos as pessoas que estão trabalhando descerem dos prédios para ver o cortejo passar. Os prédios estão enfeitados e as decorações brigam pelo seu espaço, Bahia enfeitada de rendas, de fitas e de prosa... andamos.

Mares, Ferry, fotos de negros e negras espalhadas numa grande exposição chamada NEGROAMOR. Exposição agora vista em movimento, a Bahia se exibe. Algum dia chegaremos a amar verdadeiramente o negro? Um dia isso será, enfim, permitido? Avançamos.


O Cortejo Afro pede passagem. Mulheres fazendo batucada, ORISHALÁ! Abrindo alas para a comitiva do então governador, mulheres que tocam com a força de homens mas que, por nada, perdem a essência feminina. Tocam, dançam, exibem-se... atrás o som dos cantos negros dos terreiros de candomblé. A Bahia espera uma nova fase. Que o Ghandy passe, que os homens passem e que as mulheres cheguem. Fátima. Batalá.

Chegando no Largo de Roma vemos a instituição mais amada de Salvador, as Obras Assistenciais de Irmã Dulce. O coração aperta, a fé cresce e toma o peito. Das grades do prédio que cheira a amor, velhinhos, pessoas especiais e funcionários celebram com alegria a nossa passagem. Grandes homens, nobres gestos, mulher. O coração de uma mulher guarda segredos e realiza conquistas antes jamais pensadas por um homem. Ato de fé.


Adiante a coisa mais linda de se vê, os homens do Ylê. Maravilhosos, barulhentos, imponentes, nunca vi ninguém ter tanta certeza do seu poder de sedução. Lindos! Salve o Ylê! Ousadia, seu nome é Ylê Ayê!

Estamos quase lá! Uma rua reta que nos brinda com a brisa do mar. Frescor, ânimo necessário para a subida.

Na ladeira da Colina um mar de pessoas que ora sobem, ora descem. Fluxo, refluxo. Subo, compro minhas fitas, peço a bênção à baiana que caminha ao meu lado. Obrigada. Penso na família, nos amigos e naquela louca multidão. Olho para o lado, alguém caminha junto comigo, que bom! Agradeço. Saúdo o Senhor do Bonfim com a certeza do dever cumprido. Seguro as lágrimas.


Nas grades ajoelho, faço minha oração, choro. Tenho muito a agradecer e nada a pedir. Sonhos realizados. Batalhas vencidas. Amarro minhas fitas naquele gradil enfeitado. A igreja está fechada mas ninguém precisa dela aberta, a fé está onde o homem quiser acreditar. Rezo.


Que Deus, Jesus Cristo, Senhor do Bonfim e Oxalá guardem meus amigos que estão fora de Salvador por que hoje eu os represento aos pés da Colina. Que ele guarde também minha família porque agora é hora de caminhar sozinha e que também permita que meus amigos me visitem pra desafogar um coração cheio de saudades.


Os fogos estouram no céu, as baianas dão bênçãos, bolas brancas sobem e chove prata do céu. Agora entendi que ‘quem tem fé vai a pé’ porque ‘Deus ama o povo do Candomblé’!

Laroiê Exu! Atôto. Que os orixás do ano nos protejam.

Texto: Ana Karina Rocha
Fotos:
Thomas Milz