[art_1] Brasil: Traduzir a Bahia

Não sei traduzir a Bahia, sei vivê-la. E bem do alto da minha pretensão leonina afirmo que não sou simplesmente uma baiana, sou Santamarense e isso, apesar dos pesares, traduz o que talvez venha a ser o ‘baiano’. A Bahia é assim, repleta de becos, de entranhas, de ladeiras onde se sobe e desce muitas vezes no ritmo da ‘discaração’. A Bahia é mística por natureza. Aqui há 7 portas que na verdade são 4, há 365 igrejas que não passam de algumas, há missa rezada em Iorubá com acarajé vendido dentro da igreja e fita de Senhor do Bonfim no pulso do ‘crente’. Um santamarense cantou ‘...tudo tudo na Bahia faz a gente querer bem, a Bahia tem um jeito...’ talvez seja isso.


Aqui se trabalha muito. E não tenho a menor paciência com aqueles que dizem o contrário, são no vocabulário local, uns ‘qualquer nota’, não servem nem pra ‘baque’, mas de segunda a segunda há uma programação cultural que ferve... sugiro a alternativa. Nada se compara a Bahia e não digo isso com o etnocentrismo nos olhos e sim com o reconhecimento de que todos os lugares do mundo são singulares, são únicos em essência. Mas a Bahia, a Bahia é plural. Nunca dois e dois aqui será quatro. Normalúcia nos ensinou que o número correto é três. Nossa... de certo o Rio aprendeu com ela.


Trabalho bem no centro. Onde, como o nome já sugere, é o foco de tudo da cidade. E o centro da Bahia é encantador... tem cheiro, tem gosto, tem cadência, tem gingado, tem malemolência... e como o baiano diz, tem frete. A gente se freta e se flerta, qual é o problema? Pura sacanagem.

Aqui no centro a segunda-feira é um dia interessante, mas aguarde. Falo disso daqui a pouco afinal, temos que começar com o pé direito e a segunda-feira não é, definitivamente, um dia em que a gente levanta com esse pé. Começo na terça-feira. Nesse dia o vendedor grita na porta da loja procurando seu cliente, a baiana vende seus quitutes logo pela manhã, acredite, tem fila! O jogo do bicho é feito, tem fila nos bancos, no supermercado ‘a patroa’ faz a compra do que falta para o almoço, tem fruta fresca em carrinhos de mão pra lá e pra cá, e as pessoas sorriem naturalmente.


No dia de Yansã o vermelho está mais presente nas roupas e enfeites das mulheres... Oxossi guerreiro adora! Os filhos de Xangô também. De peito aberto, mas sempre desconfiados, eles apreciam as mulheres passarem. Quarta-feira é um bom dia. Sou sempre paquerada nas quartas-feiras, que coisa! Aí aprendi a não dispensar o vermelho, ele estará presente nem que seja escondido, faz parte do feitiço da baiana. Recordo-me que quando menina uma tia me disse certa vez: - Fia, aproveita o poder que lhe foi concedido, usa isso, mostra-se presente. Será que em algum outro lugar uma tia falou isso pra uma menina de apenas oito anos? Não me esqueci, vai que dá certo?! Gosto dessas recordações, elas vão aos poucos me traduzindo... mas vamos voltar pois isso fica para um outro dia. É sempre nesse dia da semana que algumas vezes encontro nas encruzilhadas uma rosa vermelha, uma garrafa de champagne barato e algumas moedas. Ah! Aí tenho certeza, mais um homem foi fisgado. Essa Bahia... Há quem diga ‘Deus é mais’, sei não, vai que ele é baiano...


Mas o bom mesmo começa na quinta. Vixe! O povo vem todo safado trabalhar, os telefonemas são dados e os encontros são marcados - eu já garanti o meu – minha vó Helena sempre diz: - Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro! Depois os outros dizem que baiano é besta, sei... É na quinta-feira que o vendedor de peixe e frutos do mar aparece, mas só na quinta. Na calçada mesmo ele limpa o peixe, pesa o siri catado e o siri mole, corta a lula em rodelas, vende também o coentro, a cebolinha e o hortelã grosso. Ele sabe que as mulheres preparam o jantar especial de amanhã e que os bares preparam os aperitivos do outro dia. Sábio homem. Peixe temperado de um dia pro outro é tudo de bom, marisco então nem se fala. Ah! Tem também um cheiro delicioso de pão doce e na padaria pertinho daqui a gente come pão farofa. Hum... dois, três. Tá bom! Três é o número.

Enfim chega o dia esperado. Para o povo do comércio é graça gritar mais alto. Vende mais aquele que esbanja alegria, satisfação e disposição. O dia está apenas começando e ele promete... Hoje tem menino correndo da mãe ao sair da escola, tem ‘quemado’ de coco coberto com calda de açúcar que a vendedora jura que é diet e tem o gaiato que bole no cabelo da menina mais gostosa da escola e como troco leva um tapa. Pensa que ele acha ruim? Que nada, faz parte do dia. É engraçado ver os adolescentes, adoro. Os adultos acham que não se comportam mais assim, como se enganam... a fuleirajem está em todas as idades. Hoje os hotéis se transformam em motéis ao acenderem as luminárias de suas fachadas, os bares invadem a calçada com suas mesas e cadeiras e o som do ‘arrocha’ já está nas alturas. A noite promete! O garçom arruma as mesas no mesmo ritmo que ginga e olha a mulher que passa. Enquanto a loira é gelada, a morena que chega pro encontro marcado ferve em ebulição. É sexta-feira. Usei branco, fui à missa no Bonfim, acompanhei a semana que passou. Lembra da segunda? A segunda-feira? Ela agora não tem a menor importância, passemos por cima dela.


Entendi enfim, que o centro jamais poderá ser diferente e que o passar da semana por ele nada mais é do que a preparação para o carnaval que em fevereiro ou março vai invadir o centro da cidade do Salvador e fazer a festa com outros milhões que não são, nem de perto, baianos, mas que enfim entendem o que é que a Bahia tem. Viva a nossa inversão de valores.

Não esqueça, no circuito alternativo da cidade tem, toda terça-feira - que é dia de Benção – o xou de Gerônimo nas escadarias do Carmo. Não tem desculpa, é de graça, é programa 0800. Meu irmão, se você ainda não foi, passe lá. - Axé!

Texto: Ana Karina Rocha de Oliveira
Fotos: Thomas Milz