[art_3] Portugal: Eugénio de Andrade (1923 – 2005)
Um poeta maior da língua portuguesa

SERÃO PALAVRAS
Diremos prado bosque / primavera, / e tudo o que dissermos / é só — para dizermos / que fomos jovens
(In "Mar de Setembro", 1961)

No ano passado no dia 2 de Julho, na sua casa de Lisboa, aos 84 anos, morreu a grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen.
Agora, quase um ano depois, no dia 13 de Junho, na sua casa do Porto, de onde avistava o Douro a entrar no mar e as palmeiras "altas como marinheiros de Homero" no jardim do Passeio Alegre, aos 82 anos, deixa-nos mais um autor de culto e seguramente uma das referências mais indeclináveis da literatura portuguesa contemporânea. Caso inédito, um dos mais refinados e exigentes poetas da língua portuguesa e genuinamente um dos mais lidos, estudados e traduzidos do século XX, morreu durante o sono. Depois de mais de meio século de edições, e de mais de 20 títulos lançados - o último dos quais uma "Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa" - contabilizam-se 55 títulos traduzidos, nas cerca de 20 línguas em que ressoam os seus poemas. A sua poesia é lida como se fosse um autor de best sellers de ficção. Tornou-se, como se diz vulgarmente, num mito, o de poeta por excelência com lugar cimeiro na poesia do século XX. O século de ouro da extraordinária poesia portuguesa está mais pobre.

O poeta Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontina, estava gravemente doente há três anos. Irremediavelmente doente.

Deixou de poder ler e escrever Ele, que tanto prezava a sua beleza rimbaudiana. Ele, que tantos anos procurou o paraíso terrestre em versos que eram manhãs puras e rostos claros. Ele, que absorveu o mundo pelos lábios e que nos deixou alguns dos mais belos poemas jamais lidos. A sua poesia perseguia um lirismo primordial. Escreveu, um dia: "a terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que a sua poesia era capaz. A pureza, da sua poesia, é simplesmente paixão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e ainda não consumada".

Conservava a "verdade última do sangue" no céu dos camponeses da Beira, que eram o seu sangue da gente que trabalhava a terra: céu que era também o cheiro e a carícia de uma presença materna e uma eterna devoção à mãe, figura presente na sua poesia. A memória transformada em nostalgia e medo nos momentos de solidão.

Filho de camponeses, nasceu pobre como quase toda a gente do campo, mas rico desse contacto estreito com a natureza, o sol quente de Junho, os frios de Dezembro, o negro lustroso das azeitonas maduras. Desde pequeno só conheceu o sol e a água. Nesse tempo, aprendeu que poucas coisas há absolutamente necessárias. São essas poucas coisas que os seus versos amam e exaltam. Nascido na localidade da Póvoa da Atalaia, Fundão, no dia 19 de Janeiro de 1923, Eugénio de Andrade largou ainda criança a terra natal, que trocou por Lisboa. Viveu depois em Coimbra, onde terminou os estudos liceais, e acabou por fixar-se no Porto, onde foi durante 35 anos funcionário público, como inspector-administrativo dos Serviços Médico-Sociais, emprego que manteve até aos anos 80, um detalhe kafkiano na biografia do poeta por sempre se ter recusado a fazer concursos de promoção. Mas os muitos anos em que viveu em cidades não foram suficientes para afastá-lo das raízes e da Natureza.

A sua poesia caracterizava-se pela importância dada à palavra, quer no seu valor imaginário, quer no rítmico, sendo a musicalidade um dos aspectos mais marcantes da poesia de Eugénio de Andrade. Do mar também vem a música "Ó noite, ó dia, ó música de guitarra / na rua ou no teu corpo, ó barco onde as bandiers / são todas de alegria, água súbita, bosque próximo, alma, canção, ó noite, ó dia".

Eugénio de Andrade tinha 19 anos quando publicou o seu primeiro conjunto de poemas, "Adolescente", mas o poeta acabará por excluí-lo da sua bibliografia, salvando apenas alguns poemas. Um livro que deu início a uma das mais profícuas obras poéticas que Portugal conheceu nas últimas décadas. Desde então, o poeta não mais parou de escrever, acto que - como disse anos mais tarde - para si constitui "uma fatalidade".


Necessitava do papel como de um corpo. Depois de "Pureza" (1945), aos 22 anos, editou aos 25 "As Mãos e os Frutos" (1948), apontada como uma das obras fundamentais da poesia portuguesa do século XX.

O tema central da sua poesia era a figuração do Homem, não apenas do eu individual, integrado num colectivo, com o qual se harmoniza (terra, campo, natureza - lugar de encontro) ou luta (cidade - lugar de opressão, de conflito, de morte, contra os quais se levanta a escrita combativa). A figuração do tempo foi, assim, igualmente essencial na sua poesia, em que os dois ciclos, o do tempo e o do Homem, são inseparáveis. Os seus poemas, geralmente curtos, mas de grande densidade, e aparentemente simples, privilegiam a evocação da energia física, material, a plenitude da vida e dos sentidos.

Também a luz, a claridade, o branco da cal foram elementos fundamentais do seu imaginário, que com o decurso dos anos se depurou e o levou a "pintar" (os poemas) com menos cores, quase só com branco e negro.

Não se aprende grande / coisa com a idade. / Talvez a ser mais simples, / a escrever com menos adjectivos.
(Não se aprende, 1995)

Foi galardoado diversas vezes, entre as quais com o Prémio da Associação Internacional dos críticos Literários (1986), Dom Dinis (Fundação Casa de Mateus, 1987), Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, atribuído a "O Outro Nome da Terra" (1988), Vida Literária da Associação de Escritores (2000), com o Prémio de Poesia Jean Malrieu, por "Branco no Branco" (1984). Recebeu ainda, em 1996, o Prémio Europeu de Poesia. Finalmente, em 2001, aos 78 anos, o mais esperado, foi agraciado com o Prémio Camões, considerado o mais importante prémio da língua portuguesa, pelo conjunto de sua obra.

O Eugénio nasceu e sempre viveu rente ao mar como diz no poema "Por fim o mar". As suas raízes estavam no mar. Nele dorme o seu grande navio da infância, nele os seus mortos são invisíveis, estão lá todos, só esse mar pode e sabe medir a sua solidão. "Um mar escrito." Ele sempre viveu extremamente distanciado do que se chama vida social, literária ou mundana, avesso à comunicação social, arredado de encontros, colóquios, congressos, etc., e as suas raras aparições em público deviam-se a "essa debilidade do coração, que é a amizade". A amizade dos amigos verdadeiros. Em sua casa, na Foz, vivia acompanhado por livros, quadros, flores e gatos.

Eugénio cumpriu o que lhe era exigido, como refere num dos seus textos: "Estou contente, não devo nada à vida e a vida deve-me apenas dez reis de mel coado, estamos quites, assim o corpo já pode descansar".

Agora só nos restam apenas versos urgentes como estes:
"Não sei como vieste, / mas deve haver um caminho / para regressar da morte"

Eugénio escreveu:
"O outro sabia. / Tinha uma certeza. / Sou eterno, dizia. / Eu não tenho nada. / Amei o desejo / com o corpo todo. / Ah, tapai-me depressa. / A terra me basta. / Ou o lodo."

Adeus Eugénio

Texto: Joaquim Peito
Fotos: amazon.de

Esta materia foi publicada na revista Matices #46